domingo, março 16, 2008

A Testemunha


Os protagonistas dos filmes do diretor australiano Peter Weir são "estranhos no ninho". São homens com cultura e ideais diferentes do restante da sociedade em questão. Dentro ou fora de seus próprios mundos, eles sempre influenciam a rotina das pessoas ao redor. No caso de A Testemunha (Witness, 1985), o policial americano John Book (Harrison Ford) até aprende com os Amish, mas o que Peter Weir quer mostrar é como o homem da cidade influencia negativamente o dia-a-dia de um povo humilde e pacífico. Ainda mais na figura de um policial, que entende como a violência é parte de sua vida.

Como Weir começa seu filme avisando que estamos no ano de 1984, A Testemunha jamais ficará datado. Por meio de lindas imagens captadas pela fotografia de John Seale, vencedor do Oscar por O Paciente Inglês, e a trilha de Maurice Jarre, somos apresentados aos Amish, que se dirigem para um velório.

Não sou o único que não tinha ouvido falar em Amish antes de A Testemunha. Uma das maiores comunidades fica na Pensilvânia, onde o filme tem início. Os Amish formam um grupo religioso conservador, que não utiliza carros, telefones, eletrodomésticos e recusam as facilidades da sociedade moderna. É um lugar incomum que já tornaria o filme obrigatório.

Conhecemos este mundo único pela personagem Rachel Lapp (Kelly McGillis), que acabou de perder o marido. Junto do filho de oito anos, Samuel (Lukas Haas), ela viaja rumo a Baltimore para visitar a irmã. Mas antes disso, ela precisa pegar um trem na estação da Filadélfia. Lá, Samuel vai ao banheiro e testemunha um assassinato. O menino será protegido pelo policial John Book (Harrison Ford), mas uma série de complicações nas investigações do caso leva o trio de volta a comunidade Amish, que funcionará como um esconderijo para despistar os assassinos. Mas engana-se quem pensa que A Testemunha é somente um thriller. O verdadeiro filme que Peter Weir quis fazer, começa neste exato momento.

O roteiro de Earl W. Wallace e William Kelley é um dos melhores da década de 1980. A Testemunha pode ser visto como um thriller policial, um drama sobre os Amish e o inevitável choque cultural, e também como uma história de amor proibido. Outra forma de ver o filme, como eu o vejo, é juntar todos esses conflitos como partes essenciais de uma experiência única.

Quando revejo A Testemunha fico triste comigo e com o mundo em que vivemos. A evolução natural de nossa espécie alimentou uma competição generalizada entre as pessoas, que também me atinge, claro. Hoje, precisamos tomar cuidado com o que dizemos ou com o que fazemos para não causar uma reação negativa ou até violenta ao próximo. O ser humano mata um semelhante por muito pouco. Nós nos destruimos no dia-a-dia sem razão alguma. Fazemos mal a qualquer um e nem é necessário conhecer esta pessoa para destratá-la por simplesmente nada. Os exemplos são infinitos: cortamos outros carros no trânsito, reclamamos de um garçom, e desmerecemos alguém que se veste de forma estranha ou humilde aos nossos olhos. Enfim, cultivamos sentimentos horrorosos como o ódio, a inveja e o ciúme diariamente. E nunca paramos para pensar nisso.

Em A Testemunha, mesmo sem querer, John Book insere tais sentimentos na rotina dos Amish, pessoas que ainda oferecem a outra face. Uma sociedade pura se torna impura, preconceituosa com uma curta e simples convivência com um homem da cidade grande. Não que eu pense que os Amish têm o modo de vida ideal ou que sejam pessoas perfeitas. Acho que o ser humano tem esses sentimentos guardados em algum lugar, mas é preciso viver num mundo competitivo e desigual para colocar a raiva e a violência para fora.

John Book e Rachel Lapp estão apaixonados um pelo outro, mas não podem assumir isso. A própria Rachel tem um pretendente na comunidade, Daniel Hochleitner (Alexander Godunov), que tenta esconder o ciúme que toma conta de seu coração. A cena em que Book ajuda os Amish a construir um celeiro é magistral para celebrar o espírito do filme e a "competição" entre Book e Hochleitner. Mesmo assim, no calor do trabalho, o Amish dá a sua própria limonada para Book, que agradece. A cena inteira é a minha favorita do filme e me diz que a humanidade poderia ser perfeita e conviver em paz. Mas a verdade é que estragamos tudo. A cena não tem diálogos e essa ausência é substituída pela intensa trilha sonora do francês Maurice Jarre em uma das mais bonitas composições dos últimos 20 anos. Ao lado de John Williams e Ennio Morricone, Jarre é um dos maiores em seu ofício. David Lean sabia disso.

Essa cena demonstra outro ponto importante nos filmes de Peter Weir. Além de "estranhos no ninho", seus protagonistas lutam por um mundo melhor e suas armas são atitudes morais, gestos e palavras. Essa cena representa a celebração da vida, algo marcante na obra deste autor pouco lembrado.

Peter Weir é um ótimo cineasta, mas seu nome dificilmente é reconhecido ou colocado entre os grandes. É um diretor que filma pouco, talvez porque procure por roteiros que demonstrem temas que o levem a contar a mesma história em diferentes épocas ou situações. Weir foi indicado quatro vezes ao Oscar de Melhor Diretor, por A Testemunha, Sociedade dos Poetas Mortos, O Show de Truman e Mestre dos Mares, e ainda assinou outros belos trabalhos como Gallipoli, O Ano que Vivemos em Perigo, Green Card e Sem Medo de Viver.

Muitos discordam, mas A Testemunha é o seu melhor filme. Harrison Ford tem uma de suas atuações mais emocionantes e recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator por isso. O filme teve outras sete indicações, mas levou apenas as estatuetas de Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem. A Testemunha é uma prova de que um filme não precisa necessariamente de um Oscar para viver eternamente.

A Testemunha
(Witness, 1985)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Earl W. Wallace e William Kelley
Elenco: Harrison Ford, Kelly McGillis, Lukas Haas, Josef Sommer, Danny Glover, Jan Rubes, Alexander Godunov, Brent Jennings e Viggo Mortensen

7 Comments:

At 8:02 PM, março 16, 2008, Blogger Pedro Henrique Gomes said...

Ainda não vi A Testemunha, mas depois do seu texto vou conferir com certeza.

 
At 11:01 PM, março 16, 2008, Anonymous Anônimo said...

É verdade, nenhum filme precisa de um Oscar para viver eternamente. O Oscar é uma heresia que nossa sociedade competitiva e "doente" precisa premiar apenas 1 filme, sendo que há muitos merecedores todo anos de "Oscar". A história mostra que há muitos esquecidos e outros tanto que ganharam e hoje ninguém se lembra. Sendo assim, fico até feliz que "Na natureza Selvagem" não tenha sido indicado, pois é um filme muito à frente de seu tempo e com um tema que em nada agrada o povo de Hollywood. Sean Penn agradece, pois também dá de ombros para o "Oscar". Peter Weir também fez os seguintes filmes merecedores de nota: "Piquenique na Montanha Misteriosa" e " A última Onda".
"Galipolli" é o meu favorito. Parabéns Otávio, é um diretor que poucos conhecem e que merece ser lembrado.

 
At 12:16 AM, março 17, 2008, Anonymous Anônimo said...

Adoro esse filme, Otavio! Realmente é 5 estrelas. Ainda prefiro "Sociedade dos Poetas Mortos" entre os trabalhos do Weir, mas "A Testemunha" também é perfeito.

 
At 12:47 AM, março 17, 2008, Anonymous Anônimo said...

Curiosamente não tinha ouvida falar desse antes. Talvez de relance tenha visto o nome em algum lugar, mas nunca imaginava que fosse tão bom. Voce me intrigou, me deixou verdadeiramente curioso. Procurarei para assitir, com toda certeza, principalmente porque gosto de Weir e Ford.

Ciao!

 
At 5:48 PM, março 17, 2008, Blogger Kamila said...

Nunca assisti a este filme, Otavio. Gosto muito do Peter Weir e, com certeza, esse "A Testemunha" já está na listinha de filmes para assistir.

Beijos.

 
At 6:15 PM, março 17, 2008, Blogger Otavio Almeida said...

Hmm... Muitos ainda não viram A TESTEMUNHA. Recomendo que procurem o DVD o quanto antes. É um filmaço!

Abs!

 
At 9:34 PM, março 19, 2008, Blogger Unknown said...

Otavio, seus cometários acerca do filme despertaram em mim uma vontade imensa de conferi-lo. E mais: como sei que nenhuma videolocadora daqui o tem disponível no acervo, vou comprar o dvd numa loja do shopping que vi, e sabe a que preço? 12,99. Pechincha total. Como ele concorreu ao Oscar ao lado de "A Cor Púrpura" e Entre Dois Amores", dois filmes que adoro, e muitos dizem que deveria ter ganho, só fico mais e mais tentado a ver "A Testemunha".
É mesmo pena que a Humanidade tenha evoluído para isto que você citou. TODOS nós temos um pouco de egoísmo, preconceito, orgulho, inveja dentro de nós, mesmo que pouco ou muito. É triste pensar que o ser humano podia ser diferente, mas simplesmente não o é.
Abraço!
ADOREI sua crítica, parabéns!

 

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