quarta-feira, agosto 06, 2008

Não Estou Lá


O que mais me incomoda em cinebiografias é imaginar que podemos compreender um ser humano somente por sua obra e, principalmente, por deslizes ou polêmicas em que o artista se envolve. Mas é assim na vida real, não? As pessoas julgam umas às outras sem a menor razão e esquecem de cuidar de suas próprias vidas. É por isso que Não Estou Lá (I'm Not There, 2007), de Todd Haynes, é o exemplar do gênero mais original, complexo e fascinante em muito, mas muito tempo mesmo.

Isso demorou a acontecer porque um dos problemas do aparentemente irreversível processo de infantilização (ou vulgarização) do cinema nos dias de hoje está na habitual entrega de um filme com todo o seu conteúdo devidamente mastigado para o público não ter o mísero trabalho de pensar - por sinal, um direito nosso. E quando algum artista propõe tal oportunidade, a esmagadora maioria despreza uma obra de arte como esta realizada pelo excelente diretor de Velvet Goldmine e Longe do Paraíso.

Para embarcar na viagem proposta por Todd Haynes, você não precisa ser necessariamente um fã de Bob Dylan. Ok. Ser fã ajuda a reconhecer cada fase, composição ou atitude de Dylan. Mas como mostra o diretor, isso não é suficiente para decifrar as palavras, as reações e as intenções do mito. O olhar de Haynes em Não Estou Lá é íntimo, abstrato, místico e surreal. O filme pode parecer um pouco longo, mas é cinema como arte, que precisa ser analisado e interpretado por quem o vê (e ouve) de forma íntima e pessoal.

Acredito, inclusive, que o ato de interpretar um filme, uma música ou até mesmo um livro não está exatamente naquilo que você olha ou escuta. Uma música, por exemplo, não deve ser interpretada somente por sua letra. Ou por sua musicalidade. E seja lá o que você tire disso, o significado não exatamente representa o que seu autor pensa ou faz. Bob Dylan jamais explicou suas razões sociais ou políticas. Mas isso não impede seu julgamento por grande parte de quem observa e analisa a vida dos outros.

Não importa o que Dylan quer dizer com a sua música ou com suas atitudes. Ninguém é capaz de julgar um ser humano à primeira vista. Aliás, ninguém se conhece por completo. Um dia, você acorda de um jeito; no outro, você acorda totalmente diferente. Então, como somos capazes de afirmar que conhecemos outra pessoa por completo somente por uma ou outra atitude dela? Esse é o espírito do filme de Todd Haynes. Apenas viva a experiência de compartilhar um pouco dos segredos e das idéias de um ídolo.

Pensando assim, Não Estou Lá é a tradução correta para o português de quem enxerga só até onde alcança o seu próprio nariz. I'm Not There, o título original, é uma das canções mais espetaculares de Dylan - cantada no filme por Cate Blanchett e tocada nos créditos finais com as guitarras rasgadas da banda Sonic Youth. O fato é que Dylan está neste filme. E, ao mesmo tempo, não está. Trata-se de uma cinebiografia fictícia feita para girar dentro da cabeça do espectador ou de um fã de Bob Dylan por um longo tempo. Não Estou Lá é a representação visual da sensação de fechar os olhos, ouvir música e sonhar.

É uma jornada dentro daquilo que imaginamos ser a alma de um artista personificado na tela por seis atores diferentes: Marcus Carl Franklin, Ben Whishaw, Christian Bale, Heath Ledger, Cate Blanchett e Richard Gere. Nem mesmo a parte surrealista interpretada por Richard Gere deve ser julgada numa primeira impressão. E talvez a parte protagonizada por Cate Blanchett seja a mais carismática e acessível ao grande público. Aliás, Cate é extraordinária. Ela está insana como o Bob Dylan que briga com o folk e gera a ira de fãs e imprensa. Em sua última cena, note o olhar silencioso de Cate para o espectador. É a intimidade que eu citei. Não é preciso explicar. Você só precisa ver, ouvir e elaborar sua própria opinião.

Cate Blanchett está sobrenatural, mas cada integrante do elenco embarcou na fantasia de Todd Haynes, que compôs uma enigmática canção sobre os vários recursos da linguagem cinematográfica. Se os atores, o público e a crítica entenderam, eu não entro na discussão. Eu sei é que fiquei completamente chapado com Não Estou Lá.

Não Estou Lá (I'm Not There, 2007)
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Todd Haynes e Oren Moverman
Elenco: Marcus Carl Franklin, Ben Whishaw, Christian Bale, Heath Ledger, Cate Blanchett, Richard Gere e Julianne Moore

Obs: Disponível em DVD pela Europa Filmes

17 Comments:

At 6:27 PM, agosto 06, 2008, Anonymous Anônimo said...

Otavio, concordo que não é preciso ser fã para entender "Não Estou Lá". Conheço muito pouco a respeito do Bob Dylan, mas, por exemplo, consegui compreender as diversas fases pela qual sua vida e carreira passou - exceto aquela parte do Richard Gere.

E a Cate Blanchett está mesmo sensacional no filme. Gostei muito também de Heath Ledger e de Christian Bale.

Beijos!

 
At 6:42 PM, agosto 06, 2008, Blogger Otavio Almeida said...

Sim, Kamila, o Christian Bale está ótimo. Na verdade, aí é que está, não é pra você entender exatamente. É uma viagem pela vida e pela obra do Bob Dylan.

(SPOILERS)

Kamila, o Bob Dylan atuou num filme do Sam Peckinpah chamado PAT GARRETT & BILLY THE KID. Na seqüência do filme de Todd Haynes, o Richard Gere é o Billy the Kid, enquanto o Bruce Greenwood, que faz o jornalista que amola o Bob Dylan/Cate Blanchett interpreta o Pat Garrett, o xerife que teoricamente matou Billy the Kid (Já viu JOVEM DEMAIS PARA MORRER, com Emilio Estevez? Essa história é contada lá). A canção que estourou com o filme do Peckinpah foi "Knockin’ On Heaven’s Door", mas isso é apenas uma curiosidade. A trilha foi composta pelo próprio Dylan.

Enfim, NÃO ESTOU LÁ não é exatamente pra fazer algum sentido. É uma viagem.

Bjs!

 
At 8:15 PM, agosto 06, 2008, Anonymous Anônimo said...

Otávio, esse filme é ótimo. E a qualidade dele é exatamente essa, de não querer explicar nada e simplesmente mostrar as múltiplas facetas de um grande artista. Se uma pessoa dita "comum" não se conhece direito, imagina um artista legítimo e sensível como Dylan, que vira e mexe vive com sentimentos à flor da pele? Recomendo a vc assistir "Control", um excelente ducumentário sobre Ian Cutis, líder e vocalista da grande banda britânica Joy Division, lançado ano passado. Já ouviu falar? Abs.

 
At 4:39 AM, agosto 07, 2008, Anonymous Anônimo said...

Apesar de minha cotação ser basicamente a mesma da sua, não gostei tanto desse filme quanto esperava e acho até que é o mais fraco do Todd Haynes (mesmo sendo ótimo, vale ressaltar). Acho que minha expectativa atrapalhou nesse sentido, mas é um belo trabalho do diretor. Abraço!

 
At 10:37 AM, agosto 07, 2008, Anonymous Anônimo said...

Otavio, obrigada pelas explicações. Não sabia desses detalhes... Concordo com você que "Não Estou Lá" é uma grande viagem.

Beijos!

 
At 11:18 AM, agosto 07, 2008, Blogger Dr Johnny Strangelove said...

Amigo ... filme foda, eu adorei, porém não consigo colocar uma nota para ele ... dificil de se assistir, porém facil de se admirar a quebra e transformar um homem em um mito ...

abraços ...


PS: detestei a sequencia de Bale porém dos outros principalmente de Cate e Ben, são impecaveis ...

 
At 3:49 PM, agosto 07, 2008, Blogger Museu do Cinema said...

Puts, esse filme é ruim de doer Otávio, que é isso!

Adoro o Dylan, mas nem fui a metade dessa bomba!

 
At 4:21 PM, agosto 07, 2008, Blogger Otavio Almeida said...

Denis, conheço, mas ainda não vi CONTROL.

De nada, Kamila.

Vinicius, eu gostei. Viajei demais com o filme.

Johnny, concordo! Eu adorei. E Cate está fantástica.

Cassiano, pelo menos concordamos sobre Bob Dylan.

Abs!

 
At 10:57 PM, agosto 07, 2008, Anonymous Anônimo said...

Valeu a pena esperar por um texto seu sobre o filme. Su impressão foi exatamente a mesma que tive, de um filme exemplar sobre a música através do Dylan, que não se prende a linha traçada pelas biografias convencionais. Você captou tudo do filme e transmitiu de uma forma primorosa. Principalmente com seu 6º parágrafo.

Parabéns, Otávio!

 
At 1:28 AM, agosto 08, 2008, Anonymous Anônimo said...

Otavio, excelente texto! Fiquei chapado também. O filme não é só sobre Dylan, mas sobre toda sua música. E vai além, é sobre a indústria. Sobre todos os músicas e todos os talentos e personalidades. É uma viagem fantástica. E achei brilhante o fim, simbólico e maravilhoso.
É como o própria Dylan diz: "Yes, it’s chaos, clocks, and watermelons - you know, it’s - it’s everything. These people actually think I have some kind of, uh… fantastic imagination. It gets very, uh, lonesome.". O filme é todo sobre esse caos, e por isso é tão louco e atípico.

E sim, Blanchett está estupenda. Mas também adorei Ledger e Bale.

4 estrelas, idem.

Ciao!

 
At 11:04 AM, agosto 08, 2008, Anonymous Anônimo said...

Ô Denis, pode falar diretamente comigo. O que acontece comigo é que sou contra a ditadura do que a indústria quer que eu ache legal. Historicamente os Blockbusters como o filme do Batman são feitos não para prezar a inteligência do espectador, mas para que ele se sinta "up to date" com o que se espera que seja "cool". Eu detesto filmes pretensiosos, arquitetados meticulosamente para que a platéia média americana se sinta inteligente, como é o caso deste filme, com diálogos "espertos", com marketing viral, com um roteiro tão rebuscado que acaba confundindo o espectador de maneira que ele não consegue nem dizer que não gostou! "Ah sim, Batman, claro que gostei" É feito sob medida para gente que viu Senhor dos Anéis de mais e Bergman e Tarkovski de menos.
Eu gosto muito de recuperar, sim, o frescor e o olhar descontaminado de filmes como o da Viagem ao Centro da Terra, que eu vi em 3 D com meus filhos e no qual pude sentir emoção, pelos olhos deles. E pelos meus também! A questão é que não tenho necessidade de me alinhar a ninguém. Acho que filmes como esse aí vão ter até um interesse antropológico daqui a 50 anos, mas não falam nada sobre a arte do cinema. E o Daniel Day Lewis não me interessa como ator. Não acho que ele acrescente nada além de uma estudada atuação feita sob medida para a Academia ver. E olhe, o texto do Otávio é 50 vezes melhor que o Cavaleiro das Trevas e o Daniel Day Lewis juntos!! Ele escreve tão bem que eu quase estou pensando em mudar de idéia a respeito do filme!

Abraços,

Marcelo

 
At 2:21 PM, agosto 08, 2008, Anonymous Anônimo said...

Marcelo, também sou contra a ditadura hollywoodiana dos filmes prontos. Eu assisto de tudo, de filme mudo em preto e branco aos chamados "filmes pipoca". Em relação a Cavaleiro das Trevas acho que vc colocou o seu preconceito com os blockbusters antes do próprio filme, o que prejudicou sua apreciação do mesmo. Vá assisti-lo uma segunda vez e veja se vc não encontra qualidades despercebidas. Batman é um raro caso de blockbuster com cérebro. Muita gente foi assisti-lo e disse que gostou só pra dizer que está "na moda", sendo que a maioria ficou perdida com as indagações que o filme provoca. Eu sou fã do Batman e nunca gostei dos filmes anteriores, com exceção de Batman Begins, que é um bom filme mas ainda assim ficou devendo em alguns aspectos. Como leitor assíduo das grandes graphic novels desse personagem, afirmo que O Cavaleiro das Trevas é o filme que melhor representa a mitologia desse herói humano, sem poderes especiais. Abs.

PS.: Se vc encontrar o Day-Lewis por aí, ofereça um milkshake para ele, rsrs.

 
At 3:47 PM, agosto 08, 2008, Blogger Matheus Pannebecker said...

O filme me incomodou um pouco justamente nessa originalidade, mas sem dúvida "Não Estou Lá" é um bom filme, pontuado pelas ótimas interpretações. A Cate é o maior destaque mesmo e só não levou o Oscar porque já tinha um em mãos. Fiquei bastante satisfeito com o desempenho do Heath Ledger também. Resumindo, as interpretações me agradaram mais do que o filme.

 
At 4:27 PM, agosto 08, 2008, Blogger Pedro Henrique Gomes said...

Heath Ledger e, especialmente Cate Blanchett, roubam a cena. Para mim, a direção de arte e a fotografia são os destaques.

 
At 3:29 PM, agosto 09, 2008, Blogger Otavio Almeida said...

Obrigado a todos pelas palavras e pela participação.

Um bom final de semana a todos!

Abs!

 
At 5:12 PM, agosto 09, 2008, Anonymous Anônimo said...

Que o seu time quebre a zica hoje!

 
At 8:54 AM, agosto 13, 2008, Blogger Ygor Moretti said...

ah com certeza naum precisa ser fã naum , alias sendo fã naum ajuda de nada pra entender rsss mas claro naum que o filme seja assim inatingivel, ele requer muito esforço sim do telespectador, mas da pra traçar uma linha de pensamento sim de boa. òtimas atuações, um poucquinho cansativo em certos moemntos, mas no geral algo diferente que vale a pena ser visto.

 

Postar um comentário

<< Home