segunda-feira, outubro 22, 2007

À Prova de Morte

31ª Mostra Internacional de Cinema

No auge de suas carreiras, os cineastas George Cukor, Woody Allen e Pedro Almodóvar pareciam compreender as mulheres de suas épocas. São três nomes que acompanharam o universo feminino pelo cinema desde o romantismo exacerbado até a conquista de seus direitos dentro de uma sociedade dominada por homens.

Apesar de começar sua filmografia com intensas (e originais) histórias policiais de bolso, Quentin Tarantino é sim um cineasta preocupado em dar voz às mulheres. Por mais estranho que isso possa parecer, o diretor mais influente (e imitado) desde o início dos anos 1990 é um herdeiro do legado de Cukor, Allen e Almodóvar.

Bom, existe o cinema como você conhece e existe o cinema segundo Quentin Tarantino. Que ninguém mais diga que Tarantino copia. Goste ou não, ele é original. Sua referência eterna é a cultura pop. O diretor é cinéfilo, fã de quadrinhos, armas, kung fu, bares, restaurantes, faroestes, carrões, e tudo quanto é cenário para um papo (ao mesmo tempo) descontraído e reflexivo sobre o que foi pop e cult - e como isso reflete nas tribos da atualidade. E não adianta teimar: ninguém consegue se igualar a Tarantino nesses quesitos.

Verborrágico, o cineasta expõe suas opiniões por cada um de seus personagens bizarros de tão reais. Ao menos, eles falam tudo aquilo que não temos coragem de dizer, mas que certamente passam pela cabela de qualquer um. Se você ainda não se acostumou, À Prova de Morte (Death Proof, 2007), seu mais novo trabalho desmembrado do projeto Grindhouse (idealizado em parceria com o amigo Robert Rodriguez), pode flertar com o suspense e o terror, mas faz parte de seu universo particular.


E aos poucos, dentro desse mundo, Quentin Tarantino mostra que entende as mulheres. Foi assim com Pam Grier, em Jackie Brown, e Uma Thurman, em Kill Bill. E faz de novo em À Prova de Morte. Para chegar nesse ponto, Kurt Russell (impagável) é a cobaia. Ele pode ter cara de protagonista, mas são as belas moças do filme que dão as cartas.

Entre referências ao pop e até mesmo a sua filmografia (os fãs vão se divertir ao identificar detalhes e personagens de outros trabalhos do diretor), Tarantino acompanha duas turmas de garotas de vários tipos com algumas coisas em comum: elas só querem se divertir e são atacadas pelo misterioso maníaco das estradas conhecido como "Stuntman Mike" (Russell). A bordo de seu potente muscle car negro "à prova de morte", ele detona as pobrezinhas a cerca de 200 Km/h. O diretor e roteirista não explica os motivos do assassino e nem diz muito sobre seu passado - tirando, claro, a informação que está no nome. Ainda que ele tenha trabalhado como dublê, ninguém nunca reparou em seu trabalho e a pista pode ser falsa.

Tarantino é mestre em criar personagens místicos de tão trash. Ele joga pouquíssimas informações só para situar o espectador na história. E é só. Isso intriga e é genial. Veja bem: quem foi Vincent Vega (John Travolta), em Pulp Fiction? Quem são os bandidos de Cães de Aluguel? E a Noiva (Uma Thurman), de Kill Bill? O "Dublê Mike" de Kurt Russell é o mais novo integrante dessa galeria tarantinesca.

Voltando ao enredo, a primeira metade de À Prova de Morte pode irritar um pouco as mulheres, mas o público masculino agradece. É um exagero de closes no melhor da anatomia feminina, incluindo o fetiche do diretor por pés já notado em Kill Bill, além de muito blá-blá-blá ao estilo Tarantino.

O cineasta já revelou nos extras do DVD de Kill Bill, que sempre quis enfrentar o desafio de filmar cenas de ação. Para ele, todo grande diretor deveria passar por isso. Se ele realizou o sonho no Volume 1, deixou todo o vocabulário conhecido pelos fãs para o Volume 2. Em À Prova de Morte, ele faz o contrário. Começa falastrão e na segunda metade, Tarantino engata (literalmente) a quinta marcha e entrega um invejável espetáculo de ação sobre rodas. Na contramão do festival de efeitos gerados por computador (técnica hollywoodiana ironizada num diálogo comandado por Kurt Russell), o diretor monta suas seqüências em alta velocidade à moda antiga e faz você grudar na cadeira.

E é na metade final, que Tarantino pede desculpas às mulheres e mostra sua verdadeira intenção. Primeiro, ele ganha a atenção dos homens, para depois conquistar o público feminino. Sensacional. Elas passam de caça à caçadoras.

À Prova de Morte não deixa de ser uma fábula extremamente feminista. Para Tarantino, a mulher não deve se entregar à aparente força masculina. Ela não deixa de amar, deseja ser mãe e faz o que bem entende. Exatamente como os homens sempre fizeram (ou fazem). Aqui, a mulher não abdica da feminilidade para tomar o controle e é rainha do universo de Quentin Tarantino sem ligar para a opinião dos outros. E coitado daquele que pisar no seu calo. Como a Noiva fez, em Kill Bill, as garotas de À Prova de Morte partem para cima do "frágil" Stuntman Mike. É o homem se curvando diante da mulher ao descobrir sua força anteriormente reprimida. Tudo ao som de uma dançante trilha escolhida a dedo pelo diretor. Como sempre.

Pode parecer um Tarantino menor, porque é assumidamente um filme de puro entretenimento. E por não ser tão forte quanto Cães de Aluguel ou Pulp Fiction, ou épico como Kill Bill. Mas ainda assim é mais um exemplar que confirma seu talento como contador de histórias e cineasta no total controle de seu ofício. Quando o filme termina, você pode sair rindo ou gargalhando do cinema. Mas minutos depois, será inevitável não refletir sobre o que o autor Tarantino acabou de aprontar. Isso não acontece em qualquer "filme de entretenimento".

À Prova de Morte (Death Proof, 2007)
Direção: Quentin Tarantino
Elenco: Kurt Russell, Rosario Dawson, Vanessa Ferlito, Rose McGowan, Sydney Tamiia Poitier, Mary Elizabeth Winstead e Zoe Bell

8 Comments:

At 9:27 PM, outubro 22, 2007, Blogger Unknown said...

Concordo plenamente. À prova de morte é simplesmente maravilhoso, e mesmo sendo um filme de puro entretenimento, consegue aplicar aquele "além" que só Tarantino sabe fazer. É um grande acréscimo a sua filmografia, e a torna definitivamente complexa e perfeita. Ótimo filme. E parabéns pela crítica; conseguiu expressar bem aquilo que sentimos enquanto assistimos ao filme.

 
At 10:10 PM, outubro 22, 2007, Blogger Kamila said...

Otavio, nunca tinha pensado nos filmes do Tarantino sob esta ótica. Muito interessante este seu pensamento.

Estou vendo que o nível dos filmes está melhorando. Tivemos um duas estrelas. Agora, um de três estrelas. E "Atonement"? Será que recebeu umas quatro ou cinco estrelas? :-)

Beijos.

 
At 1:51 PM, outubro 23, 2007, Blogger Romeika said...

Otávio, eu não preciso dizer nada, vc disse tudo. Apesar de nunca ter pensado no Tarantino como um cineasta que entende as mulheres tão bem quanto o Almodóvar (penso que o Tarantino sabe escrever bons personagens femininos e tem sim um espírito feminista), vc me convenceu com esse argumento. Assino embaixo de cada linha. Só daria mais uma estrelinha, pq gostei muito do filme.

Aguardando a crítica de "Atonement".

 
At 2:33 PM, outubro 23, 2007, Blogger Otavio Almeida said...

Obrigado, Neto!

E, moças, eu vi ATONEMENT ontem. Ainda não escrevi pq estou raciocinando, tentando entender alguns detalhes para expôr minhas idéias de forma coerente. Mas adianto uma coisa: eu acho que vcs vão adorar!

 
At 6:14 PM, outubro 23, 2007, Anonymous Anônimo said...

Otavio, estou bem ansioso por ese filme do Tarantino. Achei essa sua crítica ótima, pois além de comentar "À Prova de Morte" em si, também começou fazendo um belo painel do estilo de cinema do diretor.

Como você adianta, acredito que não seja o melhor trabalho do diretor ("Pulp Fiction" é insuperável, fato), mas ainda assim é um filme acima da média para qualquer que seja o público. Se tiver metade da capacidade de "Pulp" (ou mesmo "Kill Bill"), já valerá a pena.

Abraço!

 
At 6:31 PM, outubro 25, 2007, Blogger Museu do Cinema said...

Legal Otávio, eu tenho a impressão mais ou menos essa, a que vc teve.

O Tarantino as vezes gosta de fazer um filme por puro entretenimento, tipo Um Drink no Inferno, que não é dirigido por ele, mas é roteirizado.

 
At 10:22 PM, outubro 25, 2007, Blogger Dewonny said...

Tbm adorei "Death Proof", um filme bem tarantinesco..rs..a cara do diretor msm, se vê nele todas as características, ñ é o melhor filme dele, mas é uma boa obra, achei bem interessante e divertido, ótimos diálogos, mulherada boa..hehe..cenas de ação impecáveis, e um final show!

 
At 12:07 AM, outubro 27, 2007, Anonymous Anônimo said...

Achei fantástico esse filme, deixando o filme de Rodriguez comendo poeira. Brilhante, quase dou 5 estrelas, mas fico com 4 mesmo, já que como você disse, realmente é um Tarantino menor. De qualquer forma, achei sensacional.

 

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